Jogo a favor - Resenha por Denise Duarte

Mas a verdade é que os ares brasilienses estão presentes em doses ora sutis ora mais acentuadas no trabalho inaugural da Base. Ouvir o quarteto nos remete ao inesquecível som urbano geograficamente concentrado na capital nacional, que colocou a jovem cidade de Brasília no mapa do rock – falamos das bandas nascidas ali nos anos 80, e tão queridas pelo público, a exemplo de Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude. 

A experiência de audição da sonoridade crua dos bons e veteranos (na estrada há mais de uma década) instrumentistas, que remexe em memórias antigas, também acaba suscitando questões relativas ao presente e futuro do rock, sobretudo o nacional. A despeito de estar em pauta há décadas, o inconclusivo e desgastado debate que divide opiniões sobre se o rock’n roll está mais para o morre ou o não-morre não consegue oferecer uma resposta razoável, seja por parte da crítica ou dos amantes do gênero, que hoje parece tentar sobreviver numa cena dominada pelo pop e outros ritmos que lhe sequestraram o protagonismo. Na década de 80, época áurea para o rock nacional, o país se manifestava efusivamente por meio de suas letras, muitas das quais se consagraram como verdadeiros hinos que deram voz a questões inquietantes da juventude brasileira - como aconteceu com o repertório da saudosa Legião Urbana. Mas, no contexto atual, acreditar que a juventude emudeceu, que os millenials parecem “lobotomizados” pelo comodismo, o consumismo, o vício em redes sociais, é ignorar os diversos movimentos que apontam para o inconformismo e brotam noite e dia nas ruas, nas artes, na música e nessas próprias redes, poderosas ferramentas de disseminação de ideias em nome das massas. Por outro lado, parece claro que a linguagem do rock perdeu força na entrada do Terceiro Milênio. Em parte por já não dizer tanto, uma vez que o tempo foi lhe tragando o viés transgressor, mas principalmente porque outros gêneros, ritmos e formas de expressão e linguagem se impuseram mundo afora. Porém, já não dizer tanto não equivale a já não ter tanto a dizer. Sob todas as pressões, o rock, incluindo o nacional, sobrevive em diversas vertentes, respira e quer se libertar para, então, visitar cenários e temáticas ainda inexplorados, assim como para continuar a fazer parte, sob o signo do riquíssimo simbolismo que o envolve e caracteriza, das indagações existenciais e preocupações político-sociais de nossos cidadãos. 

Pés fincados sobre um heliponto no topo de um prédio da luminosa Brasília, onde foi realizada a sensacional filmagem do videoclipe de “A vida é um jogo”, a Base soa como se estivesse disposta a se soltar ao sabor de um vento favorável (um jogo a favor?). Num país onde reina um massivo desejo de mudança, caminhando ao lado de uma expressiva descrença mas não de todo despido da ponta de esperança que nos compele a reforçar as palavras de ordem da justiça social, as cinco faixas do seu EP-début são um convite à tomada de ares novos, inspirada pelo sopro de antigos tempos – presente na musculatura da bateria, nos arranjos das cordas, no canto vociferado de Hodel – e rumo a rotas ainda desconhecidas. 

O disco, faixa a faixa

Faixa 1 – A vida é um jogo 

Um bom adjetivo para a faixa que dá nome ao disco (mas também para todas as demais) talvez seja o termo “urgente”.  O tom impaciente da letra, o riff, o skyline de Brasília no cinematográfico espetáculo do pôr do sol retratado no videoclipe homônimo, tudo parece concordar com a premissa de que o jogo da vida é tão imediato quanto inevitável, que tudo é fugidio e que vencer é apenas um detalhe. 

O vocal de Paul Hodel, co-arranjador das composições ao lado de Ian Bemolator, é suficientemente potente para suscitar esse sentimento de urgência, quase em tom de queixa, e contém a agressividade que a letra reclama.   


Faixa 2 - Heroi

Aqui, o que parece ser a palavra-chave desse momento inicial da banda – o termo “jogo” - se repete na sentença “O jogo apenas começou”, reiterando a imagem de uma batalha iminente.  A exemplo do que é perceptível nas outras faixas, e quiçá ainda mais nesta segunda, a sonoridade por vezes nos faz viajar no tempo, revisitando os 80.

“E o que for se foi”, diz o refrão em que, à primeira audição, parece que no lugar de “se foi” o que será dito é outra coisa menos comportada:  hora de deixar para trás o que parece obsoleto e imprestável àquilo que se pretende alcançar nessa etapa da jornada. Mas não sem antes esbarrar em obstáculos de peso, como “uma vitória vendida”, “uma vida perdida”, “uma justiça falida”  A luta, afinal, é a essência do jogo.


Faixa 3 – Enquanto

Paul Hodel pega de empréstimo versos de Paciência, do compositor Lenine - “Enquanto o tempo acelera e pede pressa” -, mas vai numa outra direção ao completar a frase com “E a arte que eu vejo|Não encontra tela|Invento outra certeza”. 

Mais adiante, os brasilienses parecem dar uma trégua ao afirmar que, “ainda que tudo ande tão igual”, ainda que a vida seja “uma história contada na TV” ou “um final feliz ou um filme sem final”, “é para um dia a gente ser”, “não importa a demora”. São versos que salientam o “tudo vai mal”: mas, como nada é eterno, tampouco essa constatação o será. A eufórica guitarra parece confirmar a sentença favorável. 


Faixa 4 – A troco de nada

Ele e ela fugiram sem pensar em voltar atrás, mostrando a coragem sentados em seu sofá.  A letra atropelada de “A troco de nada”, que Hodel despeja com o timbre rouco, vai contando uma historinha nada inédita de erros e omissões, de falas que ferem sem conseguir dizer o que seria necessário em um relacionamento. 


Todos já vimos o filme em que os protagonistas correm do perigo e desistem “antes que se possa começar”. E tudo nesta faixa assume o tom de uma constatação incômoda, mas sem perspectivas de redenção.


Faixa 5 - Perfeição

“O progresso não nos deixa atalhos |E o futuro encontra fila |O tempo enferruja os sonhos e o que falta é coragem”. Para fechar o EP, mais uma canção ruidosa, com instrumentação pulsante.

Difícil não lembrar o momento atual brasileiro, de opiniões polarizadas e grande agressividade na defesa de certezas “inquestionáveis”, ao ouvir os versos “A razão se rendeu ao absurdo |E sem tentar olhar para trás| Se arrasta lenta e sem vontade |A verdade só encontra um lado |E insiste em nos dizer”.  
Sem boas novas a contar, a Base quer cuspir o que anda atravessado. Mas, ainda que em doses muito econômicas, deixa nas entrelinhas que a impressão da “virada que nunca vem” bem pode ser mera má impressão. 

Denise Duarte